1. Contexto histórico de Amélia Duarte Machado
Amélia nasceu em 1881, quando o Brasil ainda era Império, e cresceu em uma sociedade que reservava à mulher poucas escolhas para além do casamento, da maternidade e da devoção religiosa. Casou-se com Manoel Duarte Machado, um dos homens mais ricos e influentes do Rio Grande do Norte, proprietário de lojas, terras e negócios diversificados em Natal e região metropolitana. Com a morte do marido em 1934, Amélia herdou, de súbito, não apenas uma fortuna colossal, mas também a responsabilidade de administrar um império comercial.
Sem formação em administração, economia ou direito, cercada por uma sociedade masculina que esperava vê-la fracassar — ou ao menos disposta a comprar seus ativos por valores vis notoriamente abaixo do mercado —, Amélia recusou todas as ofertas e tomou a decisão que mudaria sua vida e, em certo sentido, a história empresarial do Rio Grande do Norte: ela assumiu o comando de tudo. Como destaquei aqui mesmo em meu blog: “a viúva Machado passou de dama da sociedade à gestora de negócios com eficiência rara para a época — e para o gênero feminino, especialmente”.
Amélia contratou assessores confiáveis, buscou orientação jurídica com profissionais como o advogado Ciro Barreto, reorganizou finanças, cortou desperdícios e impôs uma gestão rigorosa aos seus empreendimentos. Seu nome passou a circular não apenas nos salões da alta sociedade, mas também nos ambientes comerciais da Ribeira, nos fóruns e entre os fornecedores. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi ela quem abasteceu com gêneros alimentícios as bases militares americanas em Parnamirim, consolidando sua atuação estratégica no momento em que o estado se tornava ponto geopolítico de interesse mundial.
Além disso, teve uma presença filantrópica relevante. Colaborava ativamente com instituições religiosas e sociais, como a Igreja do Rosário dos Pretos, mantendo vínculos com a comunidade carente. Sua figura, no entanto, começou a ser alvo de mitificações e calúnias, reveladoras do incômodo que causava sua presença no espaço público. A lenda urbana da "Viúva Machado Papa-Figo", que aterrorizou gerações de crianças em Natal, é, como observam estudiosos da cultura oral potiguar, uma tentativa de demonizar uma mulher que ousou romper os limites de gênero e prosperar em um ambiente de domínio masculino. Nísia Floresta não perpassou por essa coisa lendária, mas foi a "indecorosa", nas palavras de Isabel Gondim que inaugurou a difamação de sua conterrânea (Carta de1884).
2. Nísia Floresta: pioneirismo intelectual e educacional
Mais de um século antes, Dionísia Gonçalves Pinto — que assinaria suas obras como Nísia Floresta Brasileira Augusta — rompia também com os limites impostos às mulheres de sua época. Nascida em 1810, no Rio Grande do Norte, Nísia foi uma das primeiras mulheres a publicar textos opinativos no Brasil. Em sua obra Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens (1832), inspirada em Mary Wollstonecraft, ela denunciava com veemência: “O homem, arrogante, negou à mulher a razão, a instrução, a liberdade; quis tê-la bela e obediente como um animal doméstico” (Floresta, 1832).
Em 1838, fundou no Rio de Janeiro o Colégio Augusto, dedicado à educação de meninas. Diferente das escolas tradicionais da época, que priorizavam bordado e catecismo, o currículo da escola de Nísia incluía matemática, ciências, filosofia, francês, história, moral e até noções de política. Essa escolha educativa era, em si, uma revolução silenciosa — pois armava meninas com as ferramentas intelectuais necessárias para questionar sua subalternização.
A atuação de Nísia Floresta não se limitou à pedagogia: ela também escrevia artigos sobre a abolição da escravatura, a causa indígena e a reforma agrária. Em seus textos, mesclava argumentos morais, filosóficos e políticos, afirmando, por exemplo, que “a liberdade é um direito inato de todo ser humano”, e criticando tanto a monarquia brasileira quanto o catolicismo institucional que submetia as mulheres à ignorância.
3. Paralelos entre Amélia e Nísia: pioneirismo, coragem e audácia
Ambas nasceram no Rio Grande do Norte. Ambas foram pioneiras em campos tradicionalmente masculinos: Nísia na intelectualidade e na escrita pública, Amélia na gestão comercial e patrimonial. Ambas desafiaram os padrões de gênero estabelecidos e se tornaram símbolos de resistência feminina.
Aspecto | Nísia Floresta | Amélia Duarte Machado |
Pioneirismo | Primeira feminista brasileira e pedagoga revolucionária. Fundadora do primeiro colégio com currículo moderno para meninas. | Primeira mulher no RN a gerir com sucesso um conglomerado comercial e patrimonial em pleno século XX. |
Coragem | Enfrentou o clero, a monarquia e os homens letrados com publicações incisivas e críticas. | Recusou propostas abusivas, enfrentou o machismo empresarial e se firmou como autoridade. |
Audácia | Defendeu ideias avançadas como o fim da escravidão e a educação política feminina. | Investiu em negócios com os EUA, criou abrigo antiaéreo, liderou sua empresa sem se intimidar. |
Legado simbólico | Figura-mãe do feminismo brasileiro. Veríssimo de Melo a chamou de “a mais notável mulher que a História do Rio Grande do Norte registra”. | Lenda viva e símbolo da mulher de ação, sua figura ainda ecoa na memória popular como mito e modelo. |
4. Citações intelectuais e análises críticas
O feminismo contemporâneo reconhece nas trajetórias de mulheres como Nísia e Amélia o que a historiadora Joan Scott define como "agência histórica": a capacidade das mulheres de agir em contextos de dominação, reconfigurando estruturas de poder. Para Scott, “a história das mulheres é uma história de interrupções nos discursos dominantes sobre o que se considera possível”.
Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, afirma: “A mulher não nasce, torna-se”. Esse tornar-se — esse ato de fazer-se mulher ativa, consciente, política e protagonista — é visível tanto em Nísia quanto em Amélia. Nenhuma delas nasceu empresária ou escritora feminista; ambas se fizeram a partir do embate com a ordem social. Como escreveu a própria Nísia: “Não se obtém liberdade sem esforço, nem conhecimento sem luta” (Floresta, Opúsculo Humanitário, 1853).
Nísia Floresta e Amélia Duarte Machado são irmãs espirituais de diferentes séculos. Ambas enfrentaram os limites do patriarcado não apenas com palavras ou gestos isolados, mas com atitudes permanentes e estruturais. Nísia o fez na escrita, na educação, na teoria. Amélia o fez na prática, nos contratos, nos livros contábeis e nas decisões que moldaram bairros inteiros de Natal.
O legado de ambas não é apenas histórico: é também simbólico. Elas mostram que, mesmo em contextos adversos, é possível que mulheres assumam o comando de suas vidas, impactem o mundo ao seu redor e resistam às pressões de apagamento. Como disse Nísia, “a mulher que pensa, age e educa é um ser político”. E como mostrou Amélia, a mulher que administra, negocia e impõe respeito também é.
Assim, o Rio Grande do Norte guarda em sua história duas figuras monumentais. Duas potiguares que não apenas viveram, mas transformaram o tempo em que viveram. E que seguem, ainda hoje, sendo faróis para as gerações que virão. Muito foi feito para desmerecer, diminuir e desrespeitar os nomes de Nísia Floresta e Amélia Machado, mas o tempo passou. Houve uma revisão na história e, como dizem: história não é fábula... 24.5.2023
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