A DESCONSTRUÇÃO DO SILENCIAMENTO: AMÉLIA DUARTE MACHADO...

 

Recorte do blog: 2017

Em 1993, quando me transferi de São Paulo para a UFRN – e iniciei um trabalho de História Oral acerca de Cultura Popular, na região metropolitana de Natal, com destaque para os municípios de Nísia Floresta, São José de Mipibu e Parnamirim –, dei-me com uma pérola que instigou minha curiosidade. Ouvi uma lenda sobre Amélia Duarte Machado, surgida entre Natal e Parnamirim, e que assombrou a infância de muitos até pouco tempo. Então, senti a necessidade de uma reflexão crítica sobre a invisibilização histórica de Amélia Duarte Machado, mulher de atuação marcante em seu tempo, mas cuja trajetória foi obscurecida por narrativas difamatórias. Coincidentemente, eu já estudava a vida e a obra de Nísia Floresta, portanto comecei a fazer paralelos, pois, enquanto Amélia estava encoberta pela poeira da desconsagração, Nísia era louvada, embora merecidamente, mas que faltava consagrar Amélia ao panteão da história, tendo em vista sua significativa história. Clique na imagem abaixo e assista a um recorte do espetáculo em que Amélia Machado é reverenciada.

Pela primeira vez a história real de Amélia Duarte Machado foi a público (Recorte do espetáculo "Nísia Floresta Brasileiras Augustas" - Dez.2024).

Passei anos estudando, ouvindo pessoas, reuni material e escrevi “Amélia Machado, uma mulher desconsagrada”, mas só publiquei em 2017. Resolvi romper com o silêncio historiográfico e denunciar os mecanismos de opressão simbólica, responsáveis pela marginalização da figura de Amélia e outras personalidades norte-rio-grandense. Meu estudo enfatiza a importância da revisão historiográfica e da restituição de protagonismos femininos apagados pela tradição patriarcal.

Espetáculo "Nísia Floresta Brasileiras Augustas", exibido dias 16 e 17 de dezembro/2025

A história oficial, muitas vezes moldada por valores patriarcais e interesses hegemônicos, tem silenciado inúmeras vozes femininas que ousaram transgredir normas sociais estabelecidas. Amélia Duarte Machado é uma dessas figuras. Embora tenha desempenhado um papel relevante em sua comunidade, foi alvo de um processo sistemático de deslegitimação, marcado por maledicências e pela construção de uma lenda que visava difamar sua imagem para negar – ou tentar – negar a sua capacidade intelectual e gestora.

Recorte do blog: 2017

Meu estudo, sem que eu imaginasse, findou sendo um marco na reabilitação histórica de Amélia Machado, pois até então não havia texto algum, nem na internet, nem obras publicadas reconhecendo o pioneirismo de Amélia Machado, inclusive tratando-a como a primeira empresária do Rio Grande do Norte. O que se ouvia e se lia era a fatídica lenda. A proposta foi inaugurar um movimento de justiça historiográfica ao reivindicar a memória e o legado de uma mulher até então excluída da narrativa oficial.

Espetáculo "Nísia Floresta Brasileiras Augustas", exibido dias 16 e 17 de dezembro/2025

No meu estudo abordei Amélia Duarte Machado como a mulher que, em determinado contexto social, ocupou espaços de poder e de influência, surpreendendo o pensamento patriarcal e machista de até então, o que se configurava como transgressor para os padrões conservadores da época. Sua postura firme, sua liberdade de pensamento e sua atuação ativa foram elementos que despertaram reações adversas por parte de setores que viam no seu comportamento uma ameaça à ordem estabelecida.

Outdoor do espetáculo "Nísia Floresta Brasileiras Augustas" (2024)

A resposta a essa transgressão foi a difamação. Por meio da construção de uma “lenda terrível”, conforme escrevi no blog, que forjou-se em torno dessa mulher notável e pioneira, transmutada numa imagem negativa e estigmatizante. Esse processo de difamação não apenas comprometeu sua reputação em vida, mas também a afastou dos registros históricos formais, reduzindo sua memória a boatos e preconceitos.

Foi nesse estudo escrito por mim que se encontrou o primeiro esforço consistente de revisão da narrativa sobre Amélia Duarte Machado. Ao intitulá-lo “Amélia Machado, uma mulher desconsagrada”, denunciei, desde o título, a injustiça histórica que pesa sobre a personagem. Quis, intencionalmente, que minha abordagem combinasse rigor investigativo com sensibilidade ética, resgatando a trajetória dela a partir de documentos, relatos e interpretações críticas, dissociando-a totalmente do fabulário local, pois dela nada se sabia além das fantasias.

Espetáculo "Nísia Floresta Brasileiras Augustas", exibido dias 16 e 17 de dezembro/2025

Reconfigurei a percepção pública sobre Amélia, apresentando-a não como um mito difamatório, mas como uma mulher de coragem, inteligência e autonomia. Nesse sentido, meu trabalho inaugurou uma nova perspectiva interpretativa, que se opôs frontalmente às versões tradicionais e misóginas. Mais do que um simples resgate biográfico, meu estudo representa um gesto político de reparação histórica. Poe essa razão sempre digo que precisamos revisar e reparar a história sempre.

Folder onde se observa a fotografia de Amélia Duarte Machado

Em um cenário ainda marcado pelo conservadorismo e pela naturalização de narrativas excludentes, posicionar-se em defesa da memória de uma mulher estigmatizada constitui um ato de ruptura com o silêncio cúmplice da história. Inclusive, em dezembro de 2024, escrevi um espetáculo intitulado “Nísia Floresta Brasileiras Augustas”, e quando alguém supunha que era um erro de gráfica, eu dizia: “não, as brasileiras augustas são as tantas mulheres injustiçadas e até mesmo, apedrejadas pelo machismo reinante, apesar de serem augustas brasileiras, portanto, ‘brasileiras augustas’ são essas mulheres em que lendas, calúnias e até equívocos tentaram desconsagrá-las”. Esse espetáculo foi ao público nos dias 13 e 14 de dezembro/24.

As crianças e adolescentes ouvindo, encantadas, a história de Amélia Duarte Machado, 2024.

Ao apresentar a “nova” Amélia Duarte Machado ao Rio Grande do Norte, outrora desconsagrada pela tradição, eu quis que fosse encontrado no meu estudo um novo lugar na memória coletiva: o de uma pioneira injustiçada. O reconhecimento tardio de sua relevância social e simbólica é um convite à reavaliação crítica de outras tantas figuras femininas que, como ela, foram apagadas por um discurso histórico excludente, portanto o espetáculo a abordou com profusão, demoradamente. E uma das experiências mais interessantes foi ouvir do público o agradecimento por terem tomado conhecimento de uma Amélia Duarte que eles desconheciam e passaram a sentir orgulho. Ela, inclusive, descansava na Fazenda Pitimbu, em Parnamirim, e seus convescotes eram na lagoa Parnamirim, como era chamado esse manancial que hoje fica nas dependências da Base Aérea.

A revisão da memória histórica, como se observa nesse caso, é não apenas um exercício de justiça, mas também um imperativo ético para a construção de uma sociedade mais consciente de suas contradições e omissões. A história de Amélia Machado, recontada por mim, convida-nos a repensar quem escolhemos lembrar — e por quê.

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