ACTA NOTURNA – OS NORTE-AMERICANOS EM PASSAGEM DE AREIA, UMA PÁGINA ARRANCADA...
Passagem de Areia é um bairro dos primórdios de Parnamirim. Ali está situada a capela de Nossa Senhora da Penha. O topônimo surgiu das frequentes referências dos militares norte-americanos, alertando sobre o areal na estrada de terra ligando o centro de Parnamirim a base militar norte-americana, em Macaíba. Era comum ouvir “cuidado para não atolar naquela passagem de areia!”. O conselho nem sempre dava certo, e quase todo dia os Jeeps perdiam um bom tempo afundados nela.
A estrada era emoldurada de mata, e das margens perfilavam quilômetros a fio de “dedinho”, uma planta exótica que, na verdade, se chama Avelós (Euphorbia tirucalli). É verde-bandeira e não tem folhas. Árvore esquisita, parece um monte de garranhos amontoados. De fato seus galhinhos lembram dedinhos. Dela se tira um látex que muitos juram curar diversas doenças, inclusive aplicada sobre verruga fa-las desaparecer em poucos dias.
Dentre as histórias velhas do lugar, uma é de errepiar. Não que fosse de malassombro, mas de gente desse mundo mesmo. Sua narradora é dona Judite Aguiar, falecida em 2022, aos 90 anos de idade, professora aposentada, cujos pais se arrancharam ali quando ela era menina, e tudo aquilo era mata e tabuleiro, propriedade de Osmundo Faria, pai de Robson Faria que, depois, se tornaria governador do Rio Grande do Norte. A localidade não tinha nome específico, mas de tanto os americanos se referirem aos bancos de areia da estrada, aos poucos a expressão “Passagem de Areia” se popularizou como nome do lugarejo, que hoje é bairro.
Como sabemos, guerra não é boa para ninguém. Numa guerra, todos perdem. Para os potiguares, principalmente habitantes dos arredores de Natal, a presença dos norte-americanos, durante a Segunda Guerra Mundial, foi muito boa. Correu dinheiro. Muitos ficaram ricos ou arrumaram a vida. Por incrível que pareça, a guerra foi boa para quem vivia em Natal e Parnamirim. Para cá, não houve guerra, houve prosperidade e mudanças culturais.
Conta d. Judite Aguiar que durante a sua infância o rio Pitimbu era um manancial de águas cristalinas, de onde os nativos buscavam água para beber, banhar-se e outros serviços. Dali saiam os jumentos carregando latas ou potes com água. Mulheres e homens faziam uma rodilha de pano, colocavam sobre a cabeça e levavam água para casa. Segundo a narradora, as águas eram piscosas e haviam trechos de pesca boa.
Algumas mulheres ganhavam a vida como lavadeiras. Mal o sol atravessava as palhas do telhado, elas metiam os pés na estrada de areia fina com destino ao centro de Parnamirim, arredores da Base Aérea Oeste, para buscar roupas dos moradores para lavar. Passavam o dia dentro d’água, lavando, quarando, alvejando e dependurando as peças nos arames que divisavam as propriedades. O cenário, colorido de roupas, contrastava com a extensa paisagem verde das matas. As lavadeiras voltavam para casa à tardinha. Algumas ainda iam passar as roupas com ferro a brasa, ou engomá-las.
Como não bastasse a trabalheira, normalmente elas levavam os filhos. Era comum se organizarem para preparar o almoço. Dessa forma algumas levavam determinados alimentos providenciados na noite anterior, ou crus, para ser cozido ali, numa trempe. A safra das frutas garantia o complemento da alimentação, dessa maneira elas se fartavam de manga, apelidadas de “galeto sem asa”, laranja, mangaba, jambo, sapoti, jenipapo e outras. A própria mata também fornecia algumas frutas nativas como camboim, goiti, ubaia, guabiraba, araçá, murici, imbiridiba, cavaçu da mata, gravatá de raposa, ingá, dentre outras. Na matula ia arroz, feijão, farinha, carne de sol, peixe, jerimum, macaxeira, inhame, batata-doce, rapadura, o que tivesse em casa. Então elas se revezavam nessa vida. Um dia uma preparava o almoço, outro dia era a vez da outra. E tudo dava certo.
Havia uma cumplicidade entre essas mulheres, tanto no preparo do alimento quanto no cuidado com as crianças que ficavam por ali, brincando na água e na mata. Na verdade o ato de lavar roupa adquiria uma característica de passatempo e até mesmo diversão, pois ali elas riam, contavam causos e jogavam conversa fora. As novidades do lugarejo encontravam eco ali. Era lugar de espalhar notícia, de saber dos fatos, de se informar.
Foi nesse cenário bom que se deu alguns episódios terríveis, vividos por algumas mulheres nativas de Parnamirim. Sabemos que os Anais da História Universal registram fatos monstruosos ocorridos durante uma guerra. Um desses fatos é o estupro que, deploravelmente, faz parte da cultura da guerra. Foi exatamente isso que aconteceu na então “Passagem de Areia”, segundo a professora Judite Aguiar.
Contou ela que houve alguns episódios de estupro promovido por soldados norte-americanos contra algumas mulheres ou moças que transitavam nessa passagem de areia quando iam lavar roupa ou buscá-las no centro. Ela conta que suas mães as alertavam para que fossem sempre em grupo e evitassem andar só. Era comum que os homens da casa – irmãos ou tios – as acompanhasse.
Perguntada a opinião da professora Judite Aguiar sobre o fato de a história local ignorar esse terrível episódio que, com certeza repercutiu na época, ela interpreta como reflexo de duas forças contrárias: poder e fraqueza. Era fácil os poderosos fazer calar a boca dos familiares das moças pobres locais, sem eira e nem beira. Não precisa muito esforço para entender.
Creio que além dessa reflexão pertinente da professora, há uma consideração que flui exatamente do detalhe dito por ela no transcorrer do seu testemunho. Ela afirma que algumas moças eram “muito namoradeiras”, ou “muito assanhadas”, e que a presença dos soldados norte-americanos, brancos, de pela rosada e olhos azuis ou verdes, em meio a um povo cor de canela, chamava a atenção de todos. Nada justifica um estupro, estou apenas tentando entender em que contexto se deu a anomalia. Sabemos que houve muito casamento oficial entre americanos e brasileiras, e se no bojo disso houve estupros, creio que a anormalidade adquiriu características de normalidade, ou seja colocaram panos quentes. Não era interessante macular a imagem de quem abria a torneira do dólar e fazia escorrer rios de dinheiro na localidade. Ficava mais fácil justificar a anomalia alegando que as moças locais eram “muito assanhadas”, como se o estupro fosse uma resposta a tal comportamento.
Quando ela diz que os americanos “chamavam a atenção”, com certeza a atração era recíproca, afinal somos um país de múltiplas misturas, cuja miscigenação – branca, negra e indígena - dá ao povo brasileiro a característica de uma beleza única.
Seja como for, Parnamirim tem muito sangue norte-americanos correndo nas veias dos netos e bisnetos das vítimas dessa anormalidade. Ao contrário das que se casaram, elas ficaram em Passagem de Areia, e seguiram a vida junto a seus filhos “sem pai”. L.C.F. 2022
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