Eu e Parnamirim - Francisca Henrique

Hoje contemplo o leitor com um texto assinado por uma das mulheres mais fascinantes de Parnamirim. Uma professora, gestora, empreendedora, empresária e que é todo esse mar porque é uma educadora, e somente educadores constroem histórias tão extraordinárias. Sua história é aula, é ensinamento e, melhor, é exemplo... vamos a ela...

"Vi Parnamirim pela primeira vez aos sete anos de idade. Era março de 1965, auge da Ditadura Militar, momento conturbado da História do Brasil, perpetuado como “anos de chumbo”. Morávamos no Sítio Jacaré, em Vera Cruz, cidade interiorana, distante 60 km de Natal. Meu pai, Luiz Marcelino da Silva, era agricultor. Além de cego, muito doente e teve frustrado o compromisso de manter a família, como rezava a tradição naqueles tempos.

Minha mãe, Regina Alce de Andrade, viu-se responsável por dois três filhos: eu, meu irmão caçula, José Francisco Alves da Silva, então com dois anos de idade, Francisca Alves Medeiros, de dezesseis, e Manoel Marcelino, de vinte e um. Em Vera Cruz, éramos agricultores, trabalhávamos juntos na roça, fazendo “leirões” para plantio de macaxeira, batata-doce, inhame e hortifrutigranjeiros básicos e tínhamos alguma criação. 

Naquela época não existiam amplas políticas públicas de assistência, como as atuais. A cidade mais parecia uma fazenda sem a mínima estrutura, sem emprego, sem dar esperanças a ninguém, onde o que se quisesse deveria ser arrancado da terra, portanto, muito suado. As famílias mais abastadas da região não eram tão solidárias, certamente temerosas da próxima estiagem e da possibilidade de dificuldades futuras. Era cada um por si, e para uma mãe cheia de dignidade e decência, esmolar era uma prática impensável. 

Vera Cruz foi onde o famoso monsenhor Antônio Xavier de Paiva fez dali a “Colônia” que abrigou mais de 600 pessoas famintas, fugidas da seca terrível que assolou o Rio Grande do Norte em 1877. Todos nós crescemos ouvindo as mais amargas histórias de miséria desse longínquo tempo. Mas o fantasma da fome ainda assombrava o pequeno distrito. E minha mãe quis exorcizá-lo.


A palavra-mestra da minha mãe era “trabalhar, arrumar emprego, melhorar de vida”. Nossa situação econômica era precária e isso trazia muita inquietação principalmente à minha mãe, a qual tornou-se o esteio da família. De uma hora para a outra vimo-nos sem horizontes. Somente ela poderia buscar um porto seguro, o qual não poderia ser naquele município acanhado e com o mínimo a oferecer. 

Certo dia minha mamãe decidiu tomar o rumo de Natal. Ela saiu com a minha irmã mais velha, vislumbrando um lugar promissor, justamente pela condição do meu pai que precisaria de maiores cuidados, além de oportunidades mais amplas de trabalho para ela e os filhos. Elas chegaram a Parnamirim e, por incrível que pareça, dali não quiseram passar. Houve uma química involuntária. 

BR 101, exatamente de frente ao atual Cine-Teatro Municipal Vereador Paulo Barbosa da Silva. Na altura do ônibus seria construída a atual Passarela Presidente Juscelino Kubistchek de Oliveira.

A cidade, ainda acanhada, mas com um movimento que não se comparava com Vera Cruz, cativou-a. Ela apaixonou-se por sua topografia plana, o sabor da água, enfim sentiu que a terra do rio pequeno era a grande solução. Nessa ocasião uma prima de minha mãe, Maria Nazaré de Souza, residia aqui há um bom tempo e isso a animou ainda mais, pois era uma referência, mas mesmo assim mamãe não queria recomeçar a vida incomodando parente.

Parnamirim Que Vivi

Naquele mesmo dia, muito constrangida pela precisão, mas empurrada pela necessidade, mamãe recorreu ao saudoso prefeito José Augusto Nunes, o qual se tornaria para sempre uma referência para a minha família. Era um homem público muito prestativo. Ela contou-lhe a sua história. Ele se compadeceu e ofereceu, por empréstimo, um galpão que poderia abrigar a nossa família enquanto as coisas melhorassem. O galpão era composto por um quartinho e um banheiro coberto com telhas. Um alpendre o abraçava totalmente, coberto com palha de coqueiro. O terreno era cercado com um muro de 80cm de altura. 

Prefeito Augusto Nunes

O gestor prometeu um terreno para minha mãe construir uma casa, pois o galpão fora uma doação do Clube dos Caçadores de Natal para a Matriz de Nossa Senhora de Fátima construir a igreja de Santos Reis (esse galpão ficava onde atualmente se localiza a avenida Senador Georgino Avelino e ficou no meio da avenida e, no futuro, na lateral do Ph3). 

Tendo obtido êxito naquela audaciosa atitude, mamãe e minha irmã retornaram à Vera Cruz. Ela conversou com papai, e em comum acordo decidiram deixar Vera Cruz. Viemos ‘de favor’, num caminhão Ford antigo. Ela conversou com o motorista; ele vinha trazer tijolos para Natal e aceitou nos levar. A maior parte da carroceria estava tomada de tijolos. Assim acomodamos nossas poucas tralhas num espaço menor e deixamos para sempre Vera Cruz. 


Lembro-me que um bom trecho da estrada era de terra batida emoldurada por mata nativa. Na minha ingenuidade de criança, conforme o caminhão ganhava velocidade, eu imaginava que era a paisagem que passava ligeira por nós, e não o veículo. Assim, olhava admirada os morros, os rios, as pontes e árvores desembestados, fazendo o caminho inverso. Lembro-me como se fosse hoje o cheiro dos tijolos. Passei a viagem cutucando seus chaboques, passando o dedo em seus contornos, cheia de imaginações. Nunca pensei que aquela viagem triste e aquelas pequenas peças de barro cozido – que serviam para construir – impactariam o meu futuro de maneira incomum.

Apesar dos meus oito anos, entendia o que se passava com a minha família. Aflorava em mim o gosto amargo de incerteza e dúvida. Suponho que uma criança de hoje, diante da mesma situação, dificilmente teria a sensação igual. Naquela época existia um jeito diferente de ser criança. Como afirmam os grandes pedagogos, éramos adultos em miniatura, pois de maneira muito espontânea eu ajudava os meus pais nos afazeres domésticos e na roça. Tínhamos responsabilidades que já não se veem aplicadas nos dias atuais. E tudo ocorria de maneira muito natural. Mamãe, apesar de forte, nunca foi uma mulher autoritária.

Essa residência, hoje demolida, ficava exatamente no ponto onde atualmente é o "Shoping Parnamirim" (Pertencia a Dom João Izaías de Macedo, um dos homens mais ricos de Parnamirim/RN).

Enfim, chegamos a Parnamirim pela velha BR 101. Descemos na esquina da rua Aspirante Santos e fomos recebidos justamente pela prima de mamãe, a qual morava na referida rua. Ali almoçamos, guardamos as bagagens e as poucas coisas que trouxemos. Aos poucos fomos transferindo para o bairro de Santos Reis, onde ficava o galpão, cujo meu irmão mais velho cercou com palhas de coqueiro. Essa foi a nossa primeira residência em Parnamirim. Ali moramos durante nove meses, pois minha mãe não se acomodava àquela situação, mesmo que houvesse um certo conforto. Ela queria a sua casa.

Nesse interim, mamãe conseguiu uma doação de 5 mil tijolos. Mas quando o prefeito Augusto Nunes viu o material alegou que não seria possível doar o terreno, pois em imóveis doados não se construía em alvenaria. Exatamente nessa semana o trator da Base Aérea estava terraplenando as ruas e avenidas do bairro Santos Reis. Quando a lâmina rasgava a terra, revolvendo os seus torrões e as raízes, emanava um cheiro que, hoje, soa-me como perfume. Perfume de saudade. Perfume de inocência. Perfume de pureza. Perfume de luta!

Parnamirim Que Vivi

A máquina motoniveladora Caterpilar revolvia as raízes das árvores e arbustos que outrora se espraiavam na antiga campina. Ali estava o combustível do nosso fogão a lenha. Diariamente recolhíamos os gravetos e pedaços de tocos que se espalhavam em abundância, arrancados pelas máquinas. Com o tempo, íamos buscar lenha numa mata fechada, onde atualmente está a Bonnor. Essa foi a primeira avenida aberta naquele bairro.

Enquanto os serviços aconteciam eu e meus irmãos nos despedíamos do imenso tabuleiro coberto de alecrim, berço e cúmplice da nossa infância. Nele colhíamos guabirabas, cajuítas, azeitonas e araçás. Ali nos divertíamos, subindo nas árvores, brincando de esconde-esconde, observando os passarinhos. Nas ruas de barro, brincávamos de “roladeira” e Pipa. Essa mata foi o mais delicioso parque de diversão que tive junto ao mano caçula. 


Já extinto naquela época, o Clube dos Pescadores deixou uma quantidade infindável de chumbinhos esparramados na mata. Mamãe pedia que recolhêssemos para vender. Com um carrinho de mão, eu percorria toda Parnamirim com meus irmãos, recolhendo alumínio, vidro quebrado e osso.  Naquela época era comum a venda de todos esses materiais. Mamãe vendia para manter a casa. Também apanhávamos esterco de gado para a sua bela horta, onde ela plantava de tudo para venda e consumo nosso.

Parnamirim Que Vivi

Parnamirim era calma e bucólica, mas isso não dirimia a vigilância de mamãe para conosco. Ela não permitia que nos demorássemos nos momentos que saíamos para brincar praticamente nos fundos do quintal. A simplicidade de quem nunca estudou não lhe furtou a sabedoria da vida. Sempre teve um dito popular ou jargão para as mais diversas situações, o que não deixa de ser um modo de filosofar. Vigilante, dizia “boa romaria faz quem em sua casa descansa em paz”, dentre tantos. Ela nunca permitiu que vivêssemos totalmente soltos e nas casas alheias. “Brincar na rua, só perto dos meus olhos”, dizia.

Retornando ao contexto de nossa morada no galpão, nessa época o advento da energia elétrica e o asfalto ainda não havia chegado a Parnamirim. A única fonte potável era o “cacimbão de Luís Rodrigues”. A água subia em latões amarrados em cordas, obtidas a 30 metros de profundidade. Em 1974 se tornou o chafariz público. Todo o material para a sua construção ficou guardado em casa, a pedido do poder público, pois era uma forma de mantê-los intactos.


Para melhorar o orçamento da casa, minha mãe lavava roupa para fora. Esse serviço era feito nos braços do rio Pitimbu, exatamente em Passagem de Areia. Mamãe fazia trouxas de diversos tamanhos e levávamos na cabeça. Ali, cada um tinha a sua pedra de apoio, onde se agachava e passava o dia ensaboando e enxaguando as peças. Depois de lavadas eram estendidas no arame farpado que divisava os sítios, outras, ficavam sobre arbustos e algumas quaravam na própria grama. A margem do rio ficava colorida de roupas, como um grande tapete, pois noutros pioneiros se somavam nesse ofício.

Como éramos crianças, transformávamos esse evento numa festa. Na hora do almoço comíamos peixe “avoador” com farinha; com direito a uma das mais deliciosas e notáveis frutas brasileiras, a manga, muito nutritiva e o grande alimento dos pobres. Que orgulho eu sinto pela oportunidade de contar tudo isso! É a nossa verdade, é dignidade. Sinto-me transparente!

Banda Musical desfilando na Avenida Fabrício Gomes Pedrosa, atualmente Avenida Everaldo Breves.

Todo morador possuía em casa uma calha inclinada para um tambor ou reservatório de alvenaria, onde era guardada água de chuva durante um bom tempo. Ela coava essa água pluvial que servia para tudo. O filtro de barro se encarregava de torná-la potável.

Um detalhe interessante era a lagoa que se formava defronte ao atual Banco do Brasil no bairro COHABINAL. O fenômeno ocorria nas grandes invernadas, quando as águas se demoravam meses nas bacias moldadas pela própria natureza. Como as terras eram arenosas e esbranquiçadas, a “lagoa” era límpida e transparente. Ali mamãe lavava roupas enquanto nos banhávamos. Foi a melhor piscina da minha vida. Ela nos orientava a brincar no lado oposto para não “baldear” a água e sujá-la. A alegria não cabia em nós. 


Nessa ocasião o prefeito Augusto Nunes sugeriu a mamãe comprar um terreno no loteamento Santos Reis. Minha mãe falou da impossibilidade, pelo menos naquele momento, pois vivia de serviços informais e o pouco dinheiro obtido era apenas para as coisas básicas. Ademais, tinha que cuidar de papai. Era impossível manter o compromisso, principalmente a uma mulher tão correta e honesta. 

Creio que ao longo do tempo, observando as atitudes da minha mãe, o gestor percebeu a sua idoneidade, sem contar a sua pobreza material. Então propôs ser o avalista. Um dia ele mandou chamá-la e disse ao saudoso corretor Domingos Praxedes: “venda um lote para dona Regina; se ela não puder pagar eu pago”. 

Aspecto de uma casa de taipa tão comum no Nordeste.

Nesse dia mamãe, que sempre dizia “Deus provê, Deus proverá”, se prostrou ante a cama, orando em agradecimento. Ela escolheu o lote na esquina da rua Pedro Bezerra Filho com rua Senador Georgino Avelino, onde foi construída – lentamente – a sua casa própria. Com o seu olhar clínico, ela dizia que área de esquina era propícia para ponto comercial devido à visibilidade. Outro ponto interessante: o prefeito pagou a primeira prestação; as demais, cinquenta e nove, foram quitadas por mamãe, ajudada por parentes e amigos. O contrato foi cumprido! 

Uma família em Passagem de Areia - Parnamirim Que Vivi

Confesso que quando assisti a demolição dessa casa, cinquenta e um anos depois, para dar lugar ao Yázigi, senti um incômodo, pois só eu sabia o sacrifício imensurável de sua construção. Só eu conhecia os esforços para se obter cada tijolo, cada viga, cada porta, cada saco de cimento. Cada elemento que sucumbia aos solavancos da máquina era uma página de minha história. Aquilo parecia rasgar o meu corpo, pois era parte de mim.


Vendo os tijolos sendo arrancados e as paredes desabando descerrou-se uma cortina e retornei no tempo. Durante bons minutos observei as metralhas sendo revolvidas, a poeira subindo, misturando-se às minhas lágrimas. Só eu sei as lembranças avivadas. Em meio dia vi o sacrifício de quase um ano de serviço desaparecer. Confesso que senti o cheiro do fogão a lenha, o fogo crepitante, a fuligem, a fumaça evolando pelos cômodos, o delicioso café, a bata-doce, a macaxeira, o peixe voador no coco preparado na panela de barro... um filme real projetou-se na minha mente. 

Lembro-me que o maior desafio da minha mãe foi construir a nossa casa. Como erguê-la sem recursos? Nessa época, minha irmã mais velha foi trabalhar de doméstica e meu irmão mais velho vendia pão e bolo na feira do centro da cidade, ao lado do Mercado Público. Minha mãe deixava meu pai e o meu irmão de três anos sob a minha responsabilidade. Meu irmão mais velho ia para o interior trabalhar para obter alimentos. 

Nesse período o sargento reformado da Polícia Militar, “João Cabelo Caque”, como era conhecido, visitou o galpão e fez uma proposta para minha mãe. Como era sanfoneiro, propôs fazer um baile nos finais de semana. A cota ficaria para o sanfoneiro e a renda do botequim para a minha mãe. A proposta soava de certo modo estranha para ela, a qual nunca lidara com comércio, mas a necessidade a empurrou novamente, e como não havia nada de ilícito no empreendimento, ela o assumiu, dizendo que “vergonha é roubar” e “Deus ajuda quem trabalha”. 


Seu sonho era garantir moradia digna à família. Por mais que existisse a boa vontade do prefeito Augusto Nunes, o galpão não era o lugar adequado. Para iniciar o projeto do Forró, minha irmã fez uma rifa de um colar para comprar as bebidas e os tira-gostos. Como não existia energia elétrica, iniciamos com candeeiros alimentados a querosene.  

Mas dizem que quando somos do bem, Deus usa anjos para realizar os nossos projetos. Eis que surgiu o Sr. Manuel do Rosário. Ele viu a necessidade e emprestou um lampião a gás. Outro anjo era conhecido como “João do depósito”, responsável pelo único depósito de bebidas da cidade. Chamavam o lugar de “Enchimento”. Mesmo sem conhecer minha mãe ele forneceu refrigerantes para o chamado botequim. Ela pagaria após o evento apenas o que fosse vendido. Foi uma benção! Outro anjo foi o Capitão Salatiel Rufino dos Santos, Delegado de Polícia, que a apoiou em termos de segurança. Ele vinha pessoalmente fazer cobertura junto com seus praças. 

Entendo que tanta gentileza e bondade nasce, além da Providência Divina, da respeitabilidade que minha mãe construía junto às pessoas. Ela teve a sorte de receber apoio de pessoas de bem, que viam os seus esforços e se sentiam animadas a ajudá-la.

Parnamirim Que Vivi - Inauguração do Açougue de Dom João (João Izaías de Macedo).

Lembro-me com riqueza de detalhes dos bailes, das músicas saudáveis, das famílias presentes. Eu e meu irmão caçula ficávamos deitados numa rede num cantinho do salão, observando até o sono aparecer. Eu percebia que aquilo fazia bem para mamãe, pois sua fisionomia era outra. Só o trabalho traz dignidade. Aqueles bailes trariam algo melhor para a nossa família. Era assim que eu pensava, embalada na rede. Isso me deixava feliz. Que saudades do guaraná, da Crush, da Grapette...

Com o pequeno lucro obtido na realização de alguns bailes mamãe foi construindo uma casa de quatro cômodos. Mas após nove meses, uma vizinha sentiu-se incomodada com o barulho e denunciou ao padre Geraldo. Ele pediu que ela encerrasse a atividade, alegando que havia um material de construção naquele espaço, que seria usado numa futura igreja e não combinava um ambiente de música. Certamente entendiam que uma maldição acometeria as alvenarias... algo do tipo! 

Parnamirim Que Vivi - Evento no centro de Parnamirim, vendo-se ao fundo, na esquina, o primeiro cinema do município.

Mamãe ficou triste, mas não externou o sentimento nem dirigiu qualquer palavra contra a denunciante. Ela iria perder toda a mercadoria perecível. Mas, para surpresa de todos, fez o baile daquela mesma noite. Para quê! O padre apareceu num rompante, vestido com sua tradicional batina e, em tom alto, disse: “A SENHORA NÃO ME OBEDECEU? FEZ O BAILE? POIS VOU DENUNCIÁ-LA AO CORONEL PAULO SALEMA GARÇÃO RIBEIRO, COMANDANTE DA BASE AÉREA. 

No mesmo instante, surpresa com a atitude do padre, e apavorada por correr o risco de perder as comidas anteriormente preparadas, olhou para o religioso firmemente e disse: “Reverendo, eu tenho muita mercadoria que será perdida, se tivesse recebido a orientação dias antes, não a teria desobedecido. Mas saiba de uma coisa, mais tem Deus para dar! Não se preocupe que esse foi o último baile de dona Regina. Na realidade o evento tinha começado às dezenove horas. Era quase nove da noite e o prejuízo não seria tanto. Seja como for, surpreendi-me com mamãe, pois ela poderia ter ficado sem palavras, chorado e recuado... mas, pelo contrário, ela defendeu-se muito bem. Restou-lhe agradecer a todas as pessoas que a ajudaram, e o baile foi extinto.

Parnamirim Que Vivi - Aspecto do Ginásio Cenecista Augusto Severo

Seu maior desgosto era porque através daqueles bailes ela obtinha dinheiro para construir a nossa casa. Durante as grandes chuvas a água respingava forte no interior do galpão. Meu irmão consertava a todo instante a parte de palha, mas o material perecível se decompunha facilmente. Lembro-me com nitidez das noites de inverno leve, quando eu ia dormir sentindo os “farelinhos” de chuva respingando no meu rosto. É incrível como a gente sente saudade dessas coisas tristes, mas que mesmo assim tinham resquícios bons. Creio que essas fotografias infantis são eternas.

Até esse episódio, mamãe não queria se mudar porque a casa ainda não tinha portas e trazia o piso de terra batida. O término dependeria, a partir daí, dos bicos da própria família, principalmente dos meus dois irmãos. Enfim, após muito suor, trabalho e renúncia, nos mudamos em 1966, ou seja, há 51 anos. Por incrível que pareça, foi a primeira casa construída no loteamento Clube dos Caçadores de Natal. Fomos os pioneiros dali.


Em 1972, aos 15 anos, conheci Henrique, o qual se tornaria o meu eterno marido. Esse encontro ocorreu no famoso cinema da Base Aérea, herança deixada pelos norte-americanos. Iniciamos namoro alguns dias depois, pois mamãe dizia que precisamos conhecer as raízes das pessoas para saber da sua idoneidade. Alegava que o  “casamento era para sempre”. 

Nosso ponto de encontro para namoro era no “Solanche”, onde lanchávamos e tomávamos Crush. Na época da Festa do Boi íamos a pé. Era um acontecimento! A primeira vez que vi uma pastilha Garoto foi no “Fiteiro do Sargento Jorge”. Inesquecível! Essas fotografias plenas de simplicidade eram um céu para nós...

Estádio Gonzagão, casa do Potiguar de Parnamirim (José Aldenir / Agora RN)

Naquela época participávamos das festas no “Potiguar Esporte Clube”. Eram lindas. Lembro-me das bandas “The Fevers”, “Impacto Cinco”... Época de vestidos reformados sucessivamente para ficarem novo de novo. E os sapatos eram usados durante o ano todo. Esse espaço, também puramente familiar, marcou a história de Parnamirim.

Em 1973, aos 16 anos, consegui o meu primeiro emprego na “Casas Cardoso”, em Natal. Foi o dia mais feliz da minha vida. Ia pela manhã no ônibus da “Autoviação Sena” e só retornava à noite, após as aulas, pois estudava no colégio Nossa Senhora de Fátima. Às 22h00 ia pra Ribeira a pé, de onde saia o último ônibus. Acabei me tornando parte do esteio da casa, pois o que eu recebia era administrado por minha mãe nas coisas do lar. Mesmo não podendo comprar os vestidos e os sapatos dos meus sonhos eu dava graças a Deus e era muito feliz.


No dia 28 de junho de 1975 experimentei pela primeira vez a experiência da morte de um familiar. Meu pai faleceu. Confesso que sou incapaz de traduzir em palavras o que essa perda significou para mim. Embora papai viu-se obrigado a ser um homem ocioso devido à cegueira, era conselheiro e de sua boca só saia o bem. 

Nessa ocasião Parnamirim, apesar de ser um município novo, conservava uma prática dos primórdios da história do Brasil. Havia no cemitério o chamado “Caixão das almas”. Servia para as pessoas pobres enterrarem os seus entes. A peça era levada para casa, onde se recolhia o defunto e o transportava para o campo santo, depositando-o na cova. Todo morto era velado nele. Eu não tinha reservas, mas não conseguia imaginar o meu pai sendo enterrado daquela forma. Para aumentar a angústia, era final de mês e chovia a cântaros. Parecia que o céu estava desabando. Quase tudo convertia para dificultar as providências que se faziam urgentes. 


Pensei em pedir um adiantamento de salário, mas recuei. Chegando à funerária constatei – por mais inacreditável que pareça – que o frete importava no valor da urna funerária. Voltei a Parnamirim ‘ensopada’, desci ao lado da prefeitura e procurei o prefeito Sr. Marceliano de Almeida Neto, expus o fato e ele autorizou que o único veículo da Prefeitura, uma Kombi verde, cujo motorista, Sr. Carlito, ficasse à disposição da nossa família. Mamãe precisou tomar dinheiro emprestado, reposto no meu pagamento. Nesses conformes fomos a Natal buscar o caixão de papai. Foi difícil, mas lhe permitimos essa última dignidade. Muitos ficaram impressionados, pois somente os ricos eram enterrados em caixão.

Cemitério Público de Parnamirim/RN.

A ausência do velho Luiz Marcelino doía como ferida magoada. A casa ficou vazia, mas as coisas tinham que continuar. Permaneci morando ali com a minha mãe e José Francisco, irmão caçula. Nessa época meu irmão já havia se casado e morava em Vera Cruz. Minha irmã preferiu permanecer aqui. 

Cada vez mais se agigantava em mim a vontade de ampliar os meus conhecimentos, pois sentia que somente através da educação eu me salvaria daquelas experiências turbulentas e sofridas. Permaneci trabalhando nas Casas Cardoso, a qual me doei como nunca, mas sabia que aquilo não era o meu destino. Mesmo lidando diariamente com tecidos, vivia cercada de livros e revistas, lendo tudo o que aparecia pela frente. 

Documentário: Parnamirim que vivi - YouTube

Todo o meu ensino fundamental foi feito em casa, de maneira autodidata. Tudo orientado por meu irmão, o qual me alfabetizou. Aos dez anos tinha perfeito domínio da escrita e fazia todas as operações; aos quinze, resolvia contas avançadas. O que me ajudaria muito na conquista do meu emprego quando adquiri mais idade. Só em 1977, aos dezesseis anos, passei a estudar em escola regular de Parnamirim, no famoso Colégio Cenecista Augusto Severo, referência naqueles tempos. Que saudade dos professores Zefinha Paisinho, Raimunda Basílio, Elienai, Nestor Lima, Carlos Andrade e outros... foram nove meses ali.


Enfim, em julho desse ano casei-me na Igreja Matriz de Nossa Senhora de Fátima, sob as bênçãos do Padre Alcides. Parnamirim encontrava-se com oportunidades muito limitada, portanto decidimos morar em São Paulo. Foi dolorido deixar minha mãe, mas no ano seguinte ela foi morar comigo, realizando o seu grande sonho. Na famosa “terra da garoa” adquiri o hábito de visitar escolas, museus e instituições públicas. Era praticamente um vício. Bastava sobrar um tempo e lá estava eu dentro de um educandário, indagando tudo.

Em 1981 resolvemos retornar a Parnamirim, onde Henrique montou uma cantina, aplicando ali todo o dinheiro que havíamos conseguido no Sudeste. Quando o gerente da “Casas Cardoso” soube do meu retorno, convidou-me a retomar “o meu posto” de balconista. Naquela empresa eu tinha construído uma família. Então conclui o segundo grau na escola Winston Churchil. Devagarinho ampliamos a casa de mamãe, trazendo mais conforto.


Em 1982 experimentei a graça de ser mãe. Nasceu Paulo Henrique, meu primogênito. É indescritível a maternidade. Ela nos transforma, nos amadurece a olhos vistos. Creio que a predisposição natural de permitir a um ser humano vir ao mundo nos agiganta enquanto mulher e mãe. Foi a mais preciosa experiência da minha vida.

Iniciado o ano de 1983 comecei a lecionar na Escola Municipal Joana Alves, aqui em Santos Reis. Nesse tempo eu cursava o Logus II, projeto realizado em alguns estados do Brasil, com objetivo de formar professores leigos em regime emergencial, com habilitação em segundo grau para exercício do magistério. A experiência de ser um pilar na construção do conhecimento junto aos meus alunos foi uma das mais belas que já vivi.

Em 1984 a graça da maternidade me presenteou com a minha Heloisa Henrique, a qual foi batizada pelo Padre Alcides. Escolhi como padrinhos Ronaldo Souza e Maria Laide, pessoas muito estimadas por minha família. Neste mesmo ano concluí o Logus II. 

ESCOLA DR. ANTONIO DE SOUZA

Em 1985 obtive aprovação no concurso da rede estadual de ensino, assumindo minhas funções na Escola Estadual Dr Antônio de Souza. Nesse templo sagrado de educação ampliei meu rol de amizade entre alunos, funcionários e colegas de profissão, como exemplo Salete Vieira, Salete Maciel, Eva Lúcia, Alda Leda, dona “Tecinha”, Raimunda, Nilda, Ana Maia, Rildo, Ivanildo, Ricardo Wagner e tantas outras pessoas. São presentes que a profissão me ofertou. Quanto aos meus ex-alunos, todos são pais e boa parte avós. Nunca passam por mim sem um alô, um abraço... é aquela coisa que somente os educadores experimentam.

Parnamirim Que Vivi - Potiguar Esporte Clube.

Mas, conforme expliquei anteriormente, cada vez mais se ampliava a minha vontade de estudar. Eu sempre tive uma sensação inexplicável de realizar algo grande, mas não sabia exatamente o que era. Engraçado! Creio que aquela garra de mamãe me foi transmitida por osmose, embora numa ótica diferente. Não parei por aí. 

Em 1986 fui ao INIEP do Prof. Samuel Fernandes Pimenta e me matriculei na disciplina de Inglês e Português para prestar vestibular. Estudei como nunca. Muitas vezes atravessava a madrugada devido aos afazeres domésticos. Minha pequena Heloísa, bebê, era embalada por “canções de ninar” incomuns. Eu cantava os textos e os questionários de literatura para que ela dormisse. Era a fórmula que encontrei para ela dormir enquanto eu aprendia. Fui aprovada e iniciei o curso de Letras na UFRN em 1987.

UFRN

Quando ressalto certos detalhes da minha experiência de vida não os digo como pensasse que "descobri o Brasil". Nada disso! Sei que muitas pessoas também sofreram dores semelhantes em outras situações e lugares. Enalteço essa trajetória porque foram experiências completamente diferentes de hoje. Não existiam muitos incentivos. As dificuldades eram incomparavelmente maiores. Hoje os estudantes têm facilidades que quisera eu tê-las obtido na minha mocidade. Até mesmo a oferta de empregos é incomparável.

Enfim, conclui o curso de letras em 1991, cujo estágio foi no método Paulo Freire, experiência indescritível e que me marcou muito. Em seguida assumi a implantação da SEBE e SPG em Parnamirim. O primeiro formava o aluno no ensino fundamental, o segundo, no ensino médio (espécie de EJA). Muito bem preparada na UFRN eu trouxe esses projetos para a nossa terra. Percorria as escolas de todo o município, orientando os professores e formando-os. Muitas vezes fui de ambulância, devido à precariedade da época. As pessoas riam, como se estivesse chegando à escola uma pessoa doente. 

Hoje soa divertido! Tais experiências acabaram se tornando o laboratório que me lapidou, revelando aquela coisa inexplicável que me empurrava para realizar algo grande em Parnamirim. Eu precisava começar. Quando me formei na UFRN, ganhei um diploma no meu estágio, justamente por minha doação e a experiência adquirida nos projetos acima mencionados. Fui a primeira divulgadora do grande educador Paulo Freire em terras parnamirinenses.


Como educadora entendi que o alicerce da nossa vida educacional deve ser feito nos anos iniciais, pois, bem construído é parâmetro para o sucesso de qualquer pessoa. Em 1991 fundei o Núcleo Educacional Arco-Íris que inauguramos em 1992 com 120 alunos. Como sempre fui expansiva e extrovertida, escolhi esse nome pela alegria que o arco-íris nos transmite, e pelo fato de Parnamirim ser um arco-íris de raças, cores e culturas, afinal para cá convergem pessoas de todos os rincões potiguares e até mesmo de outros estados e países. Onze anos depois, com o êxito da instituição mudei o nome para Ph3, homenagem aos meus dois filhos. Também costumo dizer “Potencial Humano ao Cubo” e “Paz e Harmonia”.

Em 1997, 33 anos após a nossa chegada a Parnamirim, experimentei novamente a sensação da morte, perdendo a minha mãe. Tive a sensação de que o chão sumiu. Eu não acreditava. Como perder um porto seguro? Como perder um guia? Já anciã, mas lúcida e cheia de autoridade, era um “paviozinho” aceso, alumiando minha vida, mas deu a queria ali. Como perder aquela luz! Meu Deus! É experiência mais amarga do mundo. Não consigo traduzir em palavras essa experiência experiência. 

Sua morte me obrigou a perceber lentamente uma grande e preciosa verdade. Ela, que fora uma fortaleza, tinha me feito forte. E daquele momento em diante cada filho estaria no comando de si. Como é difícil a experiência da morte de um ente amado. Mamãe foi uma fortaleza. Mulher decidida, de iniciativa e posições firmes. Minha experiência junto a ela fertilizou o meu espírito para que eu triunfasse. Seu nome, Regina, em latim, significa “Rainha”. Eu a chamava de “minha rainha”. Rainha por excelência, por ter sido parte fundamental de tudo o que eu e os meus irmãos somos, cada qual com suas peculiaridades. Sua coragem, sua audácia, seu dinamismo ficou conosco.

Atualmente, olhando o Yázige construído sobre as metralhas da casa de mamãe, construída com esforços descomunais em que sabia quanto custou cada item, construí um belíssimo prédio para abrigar o auditório do Ph3 e sede do Yazigi. Essa casa também foi minha durante anos. Meus filhos cresceram ali. Mesmo casada, mamãe quis que seu estivesse ao seu lado. Às vezes penso que ela supunha que eu fosse o seu porto seguro. Se o fui, ela que o fez.

A vida segue. Minha mãe estava no céu e isso me basta. Segui a minha vida. Associar a função de professora estadual e municipal com a minha escola tornou-se muito difícil. Nunca fui pessoa do “fazer por fazer”, ao modo laisse faire. Na realidade era possível conduzir as duas funções, mas associá-las ao meu colégio era complicado. Eu sentia que era um engodo. Estaria fazendo de conta que dava aulas. Nunca! Jamais! Foi exatamente nesse ano que pedi exoneração da função de professora da rede municipal, exercendo-a durante 20 anos. Então dediquei-me amplamente ao meu colégio, e com tempo para o ensino público. Hoje o Ph3 é uma escola de referência, de acordo com órgãos externos. A internet está aí para todos verem e conhecerem detalhes sobre essa instituição. Em 2003 me aposentei do município.


Em 2009 recebi o prêmio do MPE Brasil em termos de Gestão de Qualidade. Em 2012 recebi novamente o mesmo prêmio pelo Sebrae e cheguei a finalista a nível nacional. Fui a Brasília receber o troféu, ocasião em que estava presente um representante do Ministro da Educação, dentre renomadas autoridades da educação e de outras áreas. Nesse mesmo ano recebi o Prêmio de Responsabilidade Social, também pelo Sebrae. Desde 1999 recebo anualmente o prêmio melhores do ano. Recebi o prêmio Noilde Ramalho, ícone em Educação e recentemente a medalha Eva Lúcia, pelos serviços prestados à Parnamirim. Também recebi o título de cidadã parnamirinense, em 1998, justamente fruto desse histórico.

Muitas pessoas me perguntam qual é o segredo do PH3. Numa breve síntese, o Ph3 é uma escola de excelência pois dei a Parnamirim uma instituição que trabalha os conteúdos, aliados a eles a formação humana, educação Holística que vê o ser humano nas suas quatro dimensões: física, cognitiva, emocional e espiritual. Uma educação humanizada, na qual colaboradores e alunos são respeitados na sua individualidade.

Confesso que, embora esses prêmios e méritos notáveis - tão almejados por muitos - sejam preciosos na minha história de educadora, eles nunca me tornaram uma pessoa prepotente ou tentada a se projetar como superior ao que quer que seja. Tudo é fruto de muito trabalho, foco, muito estudo, investimento, luta e coragem. Hoje, tenho a graça de ter comigo a minha segunda rainha, minha Heloísa, bem como o meu filho querido. Assim a nossa história se perpetua.

Em 2017 assumi a Semec foi uma grande experiência, mas assuntos de outra ordem abortaram os planos. Lamentei muito não poder colocar um tijolinho na educação pública do meu amado município, terra que escolhi morar e empreender. Mas a vida continua. As obras continuam. Todos conhecem todos. As coisas se revelam necessariamente sem exigir palavras.

Hoje, quando relembro daquela menininha de oito anos, de vestidinho vermelho, na carroceria de um caminhão, cutucando tijolos e fantasiando mil coisas, compreendo que tudo foi o prenúncio da história que desencadearia a partir dali. Aqueles tijolos, aquelas metáforas já assinalavam muito, pois tijolo é construção. Eles foram o primeiro sinal. Minha mãe, cheia de honra, foi uma mulher que transformava tudo a partir do nada. E isso foi transmitido para mim.

Fui uma mulher igual a mamãe, mulher de obras. Valeu a pena! E como valeu a pena. Só tenho a agradecer a todas as pessoas que passaram pela minha vida, em destaque muito especial ao meu marido, meu grande aliado, amigo e parceiro eterno. Em destaque à minha genitora, meu porto seguro, meu amor maior. Aquela que me ensinou a ser um ser humano pleno, cuja imagem eu vejo por onde ando e constato trabalho, luta e a coragem de vencer. Mamãe foi uma mulher-coragem. Mulher com ‘M’ maiúsculo. Mulher que teve a oportunidade de vencer, ou tentar vencer por caminhos não convencionais, mas escolheu a estrada da dignidade, da decência e se fez exemplo até a morte.

Minha história não é mais nem menos bonita dentre as de tantos pioneiros. Mas eu sei o quanto me custou cada tijolo, cada página da minha vida. Só tenho a agradecer a Deus por tudo. Não tenho nada a pedir. Sinto orgulho da minha humilde casa de taipa, do “meu” galpão de palha, enfim do meu passado, pois esse baú fotográfico não me vergonha. 

Como educadora, tenho consciência de que o meu legado – e o de outros pioneiros – simples ou sofisticados – pode inspirar muitas crianças e jovens, os quais colocarão muitos tijolos em muitas obras, sejam físicas ou intelectuais. Parnamirim precisa de todos. Muito obrigada!".

Francisca Henrique - 2018

 


O mistério do Alecrim de Parnamirim...

 


Contam os livros – e os pioneiros de Parnamirim, município da região metropolitana de Natal – que toda a área onde espraiou-se essa cidade, demorava-se um tabuleiro de Alecrim silvestre a perder de vista.

Recentemente a escritora Angélica Vitalino publicou o livro “Pega e lê” em que menciona justamente o Alecrim que se emendava com o horizonte como gigantesco lençol lilás, mas que atualmente quase não é visto, desaparecido pelo asfalto, concreto e paralelepípedo.

No caudal de tantos tipos de Alecrim, tantos nomes populares e tantos nomes científicos e tanta semelhança uns com os outros, deu um nó nos meus pensamentos.

Em 2009 o então prefeito Maurício Marques dos Santos, após aprovação da Câmara Municipal, sancionou a lei número 1.470, de 19 de novembro de 2009, com quatro artigos, instituindo o “Alecrim de Tabuleiro” como Planta-Flor símbolo da cidade de Parnamirim/RN. O artigo 2º diz que seu nome científico é “Rosmarinus Officinalis”. Esse alecrim, no caso, é o que fazemos chá e é muito comum nos quintais e nas prateleiras dos supermercados, também usado como condimento. A flor do Rosmarinus officinalis é pequena, azul, rosa ou branca.

Catorze anos depois, provocado por algum cidadão interessado no assunto – e que considerava errado o nome científico até então aprovado –, o prefeito Rosano Taveira sancionou a lei número 2.403, de 26 de junho de 2023, com o seguinte teor:

“Art. 1º O Art. 2º da Lei Ordinária nº 1,470, de 19 de novembro de 2009, modificado passa a vigorar com a seguinte declaração: Art. 2º Com o nome científico Baccaris Dracunculifólia, o Alecrim do Campo (Alecrim de Tabuleiro) por sua natureza morfológica, botânica, geográfica...”.

Nessa situação temos duas plantas, a primeira é a Rosmarinus officinalis e a segunda a Baccharis dracunculifólia, oficialmente declarada, depois, como flor símbolo de Parnamirim. As flores da Baccharis dracunculifólia são brancas. Nas floradas os galhos ficam pesados como um só buquê.

O Alecrim de Tabuleiro – esse que os pioneiros contam que se esparramavam em toda essa região – faz grandes moitas e por vezes atinge dois metros a mais. Ele se esparrama no terreno, tem galhadas e caule finos, muito compridos, que se quebram fácil, cujas folhas são miúdas, mas largas se comparadas ao Rosmarinus officinalis que parecem palitos.

São plantas parecidas e com propriedades medicinais diferentes. A Rosmarinus officinalis tem propriedades medicinais que auxiliam na digestão, combate gases, estimula a vesícula, protege o fígado, é anti-inflamatória, analgésica, antidepressiva e ainda é eficiente contra o cansaço físico e mental. A Baccharis dracunculifolia apresenta atividade anti-microbiana contra diversos tipos de bactérias. Estimula a produção de insulina pelo pâncreas, protege o pâncreas e aumenta a eficiência da insulina na corrente sanguínea. Combate úlceras gástricas e também tem efeito anti-inflamatório!

Pois bem, ambas são Alecrim. Mas tenho dúvida quando coloco esses dois Alecrim juntos e olho para o alecrim ainda encontrado em Parnamirim, ou seja, o Alecrim de Tabuleiro (embora tenha outros nomes, como Alecrim Caboclo, depende do estado nordestino e região mesmo dentro do próprio estado).

Tento me convencer de que o Alecrim de Tabuleiro que existiu em abundância em Parnamirim, é o Lippia Gracillis Schauer, pois é o que mais se parece com o que ainda encontramos pelas matas de Parnamirim. A flor da Lippia gracilis Schauer, popularmente conhecida como alecrim-de-tabuleiro, planta endêmica do Nordeste brasileiro tem a cor branca, caule quebradiço, com folhas pequenas, aromáticas e picantes, de pouco mais que um centímetro de comprimento. As flores são miúdas e amarelo-esbranquiçadas.

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Para mim a Erva Cidreira (Lippia alba - Popularmente conhecida com Erva cidreira brasileira, Erva cidreira de arbusto, Erva cidreira do campo, Falsa erva cidreira, Falsa melissa, Alecrim do campo, Erva cidreira brava, Sálvia-da-gripe, Sálvia, Sálvia-trepadora, Salva-brava, Cidrilha) é prima próxima do Alecrim de Tabuleiro. Digo isso por causa da enorme semelhança entre ambas das folhas, flores, talos e a ramagem, além da cor da flor (lilás). E essa semelhança não acontece quando a colocamos diante da Rosmarinus officinalis e a Baccharis dracunculifólia...

Enfim, sigo tentando entender qual, de fato, é o Alecrim que permeou os tabuleiros desse pedacinho do Brasil...


Sr. Calixtra Pereira Filho, um dos pioneiros do município de Parnamirim...

SR. CALIXTRA PEREIRA FILHO

José Calixtra Pereira Filho nasceu há 77 anos, em 20 de novembro de 1947, às cinco horas da manhã, em meio à natureza exuberante de Taborda, distrito de São José de Mipibu. Sua infância transcorreu em uma propriedade pertencente a Olavo Feliciano de Araújo, proprietário de engenho. Essa propriedade possuía uma capela, uma casa de farinha e uma beneficiadora de agave, além de vastas roças de macaxeira, mandioca, inhame, feijão, batata-doce e diversas fruteiras. Filho de José Calixtra Pereira e Joana Alexandre Nascimento Pereira, Calixtra foi matriculado na escola local aos sete anos. Durante o dia, ajudava seu pai nas colheitas, enquanto as aulas aconteciam à tarde.

Na época da colheita de feijão, ele tinha a responsabilidade de pastorá-las para que as ovelhas não se alimentassem dos grãos. Por essa tarefa, recebia uma pequena remuneração de "um tostão" por dia, totalizando seis tostões por semana, que era uma cédula de 500 réis e uma moeda de 1 tostão, quantia que trazia grande alegria, pois era a primeira vez que ele via dinheiro. Seu pai sempre o ensinou a poupar, assim, nunca ficava sem dinheiro, mesmo que fossem centavos.


Além disso, ele passou muito tempo lavando fibra de sisal no rio, uma tarefa designada às crianças, o que limitou seu aprendizado e resultou em dificuldades na escola, culminando em várias reprovações. Boa parte da infância e adolescência de Calixta foi marcada por desafios, fato que permeou a sua infância de nuanças tristes.

Em 1958 seu pai resolveu ir morar em Parnamirim, arrumando emprego numa pequena granja onde hoje está o Comercial de Ferragens 101, de propriedade de uma senhora por nome de Elza, funcionária dos Correios administrado pela Sr.ª Elsa Machado, esposa do sr. Josafá Sisino Machado. Os Correios funcionavam onde atualmente está a Igreja Batista, no centro de Parnamirim. Próximo dali havia a residência da Sr.ª Nísia, onde hoje é uma loja de tecido ao lado da “Casa Parnamirim”, de José Siqueira, empresa que já era antiga no local, segundo ele.

Então o sr. José, pai do sr. Calixtra, confiou a ela a educação dele, já que ela dava aulas de reforço. Ficou acertado que ela faria o papel de professora do pequeno Calixtra enquanto a Escola Presidente Roosevelt estava em recesso, dando-lhe alimento e roupa, e como pagamento ele ficaria à disposição para trabalhar para ela, já que não tinha como pagar. Essa senhora disse que o pai não se preocupasse, pois ela conseguiria uma vaga para ele sem problemas. Mas passaram três meses, chegou o fim do ano, iniciou-se o outro ano e nada de ela matriculá-lo. Ao invés de aluno, virou uma espécie de trabalhador infantil daquela senhora, sem tempo para sua infância. O sr. José questionou-a, mas ela não demonstrou a menor sensibilidade, inclusive retornou ao Rio de Janeiro, terra natal dela. Então o pequeno Calixtra retornou para para sua casa do mesmo jeito que chegou. E atrasou mais dois anos da sua vida estudantil.

SR. CALISTRA É APAIXONADO PELA NATUREZA.  POR ELA ELE TEM UMA ESPECIE DE DEVOÇÃO

Para não deixar Calixtra solto e sem ter o que fazer – preocupação típica de um pai cuidadoso – sr. José mandou um carpinteiro fazer uma carrocinha e o colocou para fazer frete nas ruas. O primeiro frete feito lhe rendeu dois contos de réis, tendo transportado a feira de uma senhora até a casa dela, exatamente onde hoje é o Parque de Exposição Parque Aristófanes Fernandes. Essa residência pertencia à viúva Machado. Calixtra saiu dali voando de felicidade, já que passou um grande período sem ver dinheiro algum. No final de tudo, chegou em casa com seis contos e trezentos mil réis e entregou ao pai que, impressionado, disse “guarda esse dinheirinho que é seu”. E Calixtra não se conteve.

Em seguida, o sr. José conseguiu emprego numa granja maior, cujo proprietário tinha relação com a Base Aérea e descartava muito lixo com osso, papelão, alumínio, ferro, vidro, materiais que àquela época passavam compradores que as reciclavam. Calixtra e o pai recolhiam e transportavam cada um em sua carroça. Em 1963 eles mudaram de granja novamente. Dessa vez ficava próxima aonde hoje está os Correios, ocasião em que Calixta fez uma caixinha de madeira, comprou os materiais e passou a ser engraxate, fazendo ponto num local muito conhecido, no centro, o famoso “Fiteiro”, onde apareceram vários clientes.

Certa vez conheceu um curitibano que trabalhava na Base Aérea. Esse homem gostou muito do jeito do jovem Calixtra e o convidou para trabalhar como auxiliar de cozinha no restaurante da Base, num restaurante que se chamava “A Cafeteria”. Ali ele trabalhou algum tempo até ser convidado a trabalhar num restaurante do Aeroporto Augusto Severo, onde exerceu a profissão durante mais de um ano, quando saiu e em 1965 passou a trabalhar como mecânico de bicicleta juntamente com os jovens Birec e Oscar, ambos estão vivos e permanecem em Parnamirim. Nesse tempo eles se mudaram para uma localidade que se chamava “O Carrasco”, onde hoje é o bairro Boa Esperança, onde moravam uns seis meses, mudando novamente.

Em 1965 ele passou a trabalhar como ajudante de pedreiro, quando conheceu Maria Socorro Cavalcanti Pereira, que futuramente se tornaria sua esposa. Em 1968 ele passou a frequentar a Igreja Batista de Parnamirim. Socorro é natural do Crato, no Ceará, quando seus pais resolveram ir morar na Paraíba, onde nasceu seu pai, e depois se mudaram para Natal, próximo â lagoa do Jiqui. Calixtra e Socorro namoraram durante cinco anos – um namoro conturbado, reprovado pelo pai dela – mas que findou em casamento, pois durante esse tempo, devido à prática, ele aprendeu o ofício de pedreiro e passou a juntar um bom dinheiro, trabalhando de carteira assinada, cuja primeira empresa que o contratou foi a Souto Engenharia. Foi quando se casaram no dia 21 de novembro de 1970.


Ao longo do tempo, já como pedreiro profissional, ele trabalhou em outras empresas, inclusive em Natal, como a Proec, a Concil e a Cincol. A partir de 1977 sua esposa Socorro adoeceu, e como eles só tinham um ao outro, ele optou a trabalhar de forma autônoma, como biscate para ficar próximo à esposa, dando-lhe a devida atenção, tendo em vista que ela precisou ter a perna amputada, tornando-se cadeirante, mas nunca deixou de fazer serviços de pedreiro esporadicamente. Atualmente está aposentado. Em sua casa se encontra um imensidão de materiais de sucata, matéria prima para a sua criatividade como luthier e um verdadeiro “professor Pardal”, inventor de ferramentas e assessórios para facilitar a vida das pessoas. Sr. Calixtra já fabricou diversos Ukulelês e atualmente se dedica à fabricação desses instrumentos musicais. Sr. Calixtra é membro da Igreja Batista de Parnamirim.

Como se percebe, a vida de toda família se ambientou em terras parnamirinenses devido à proximidade, de maneira que ele se considera um parnamirinense. Desde que nasceu, suas relações sociais sempre foram em Parnamirim. É filho de José Calixtra Pereira e Joana Alexandre Nascimento Pereira, ambos potiguares.

Calixta e Socorro tiveram dois filhos: Jederfeson Cavalcanti Pereira e Lídia Cavalcanti Pereira. Há alguns anos reside à rua Francisco Tomás de Vasconcelos, nº 150, Rosa dos Ventos, bairro de Parnamirim. Durante toda a sua vida, o Sr. Calixta sempre foi apaixonado por música, mas quando jovem, não teve a oportunidade de se dedicar a esse ofício, findando num sonho distante, tendo em vista que nem mesmo a universidade existia por aqui.

Nascido num lar humilde, era comum a todas as famílias humildes daquele tempo usar latas de goiabada e marmelada como prato. Aos 9 anos de idade, em suas andanças com o pai, ele presenciou um senhor fazendo rabeca, e isso o deixou maravilhado, pois viu que uma pessoa podia fabricar instrumentos musicais. Então ele teve um insight e só enxergava as latas de goiabada como matéria prima para a ideia.

Ele não pensou duas vezes. Pediu ao pai uma lata dessas e fez um instrumento de cordas, usando arame, madeira e pregos. Foi o seu “violão”. O fascínio pelo brinquedo foi tão grande que tornou-se extensão do seu corpo. O pequeno Calixta divertiu-se durante parte da infância com essa invenção. Inclusive brincava com amigos da mesma idade, vizinhos do sítio. Quando quebrava, fazia outro.

Como o tempo só anda para frente, o tempo andou, andou, andou muito... Quase 70 anos depois – no tempo sombrio da Pandemia – anos 20 do século atual, eis que ele se encontra com um rapazinho por nome de Mateus, que era músico e tinha um instrumento musical chamado “Ukulelê”. Naquele instante, veio à memória do sr. Calixta a experiência com os instrumentos de lata de goiabada.

As lembranças do sítio vieram à sua mente. Ele pegou o instrumento, pegou um papel, colocou o Ukulelê sobre a folha e riscou o molde. Chegando em casa, guardou e ficou pensando sobre que madeira iria usar. Havia uns pés de manga derrubados num terreno do seu bairro. Então ele conseguiu alguns galhos bem grossos e levou para casa para analisa-los. Dias depois, cortou um pedaço com 65 centímetros e foi dando forma ao Ukulelê. Comprou os “acordeamentos”, as tarraxas numa casa especializada e fez a peça, usando uma bitola. Assim nasceu um Ukulelê de 52 centímetros, cujo som é agradável. Agora não era mais o brinquedo de lata de goiabada, nem feito por uma criança, exceto a criança que ele diz habitar dentro dele. Ficou bonito, e o som, perfeito.

Quem lê essa história, imagina que o sr. Calixtra hoje se tornou um músico, lê partituras e tudo mais. Ledo engano! Por mais incrível que pareça, o sr. Calixta não toca instrumento algum, ele apenas faz improvisos para cordel, pois gosta de declamar. É mais um dos seus dons. E nessa história ele já fez quatro Ukulelês. Um doou ao professor da Igreja Evangélica Batista (PIBP), onde congrega, e o outro deu para um neto.

UM DOS UKULELÊS FEITO PELO SER CALISTRA

O sr. Calixtra é aquela pessoa cuja forma em que foi feito se quebrou e a jogaram ao mar. É um homem querido por todos e por onde anda espalha o bem. Como disse, ele tem outros talentos. É dotado de ampla sabedoria, e ela se reveste de uma notoriedade maior porque é vestida de simplicidade. O sr. Calixtra é um exemplo vivo de que o homem é dotado de muitos dons, e que eles podem aflorar a qualquer momento.

Há nele um filosofar constante, e esse filosofar é uma aula, pois ele arranca da natureza os mais fundamentados exemplos para compará-los à vida humana, aos fatos, às relações sociais etc. Desse modo viajamos em suas narrativas. Inclusive é um livro aberto sobre a História de Parnamirim com um detalhe: ele viveu a história. É mais velho que o próprio município onde mora. Ouvir um homem como o sr. Calixtra é conhecer fatos que, se não fosse através dele - e de outros pioneiros -, estariam esquecidos e correriam o risco de serem sepultados para sempre.

Um dado curioso: ninguém ouve da sua boca uma palavra torpe nem um maldizer de alguém. Nada que denote sujeira humana. Observo sutis formas de expressar a sua religiosidade, sempre dentro de um contexto, sem menosprezar a possível crença de alguém, ou a sua ausência, ou defender a sua fé como a correta, a ideal, a superior. É um homem respeitoso, de excelentes modos no vestir, se comportar socialmente, no falar, enfim, é um homem raro.

Sr. Calixtra é exemplo vivo de que todos nós temos vários dons e que uma hora ou outra eles despertam, somando-se aos outros dons. No presente momento o sr. Calixtra está fazendo dois Ukulelês com madeira de uma mangueira com mais de 30 anos encontrara ali mesmo no bairro. Não que ele prefira a mangueira, usa porque é mais fácil encontrá-la. Sr. Calixtra é estudante de música. Faz aulas de coral há 3 anos e já se apresentou em alguns lugares. Ultimamente ele vem gravando áudios com as suas lembranças, além de algumas prosas poéticas, pois quer transportá-las para o papel.

Sr. Calixtra é um exemplo vivo de que todos nós temos vários dons e que uma hora ou outra eles despertam, somando-se aos outros dons e que todo homem, mesmo vindo da pobreza, pode inspirar a muitos através de seus feitos. Ele também é um exemplo de um ser de alma superior, pois já passou por momentos de muitas injustiças protagonizados por pessoas sem escrúpulos, mas jamais revidou ou amaldiçoou qualquer uma dessas pessoas. 18.9.2024. 

A MORTE IGUALA A TODOS...

  FINADOS    Nascer é uma graça, um encanto. Deixamos o útero quentinho, confortável, pleno de proteção - onde o bom durou pouco - e ganhamo...